Ser e Tempo, § 1 - 1. Da necessidade da 'questão do ser' à questão do 'ser da necessidade'


A moderna biologia caracteriza o homem, ainda no velho molde aristotélico do gênero próximo e da diferença específica, como um homo sapiens, como um espécie hominídia sapiente. Com esta definição, ela ainda se inscreve no mesmo horizonte da concepção clássica do animal rationale. É bem verdade que ela o faz com um pequeno deslocamento "para a direita": avança na especificação do gênero (homem não é simplesmente animal, mas um animal vertebrado mamífero placentário primata hominídio humanóide), ao tempo em que indetermina um pouco mais a differentia, que sai da estrita rationalitas para uma mais ampla sapientia. Em outras palavras, o homem é um animal que sabe (inclusive, que é animal e que sabe).

Porém, em que pese as eventuais diferenças de perspectiva acarretadas por estas e outras tais concepções do humano, o fato é que mesmo as reflexões mais tranversais sobre o homem tendem a iniciar a partir da constatação de uma singularidade que o individualize no conjunto dos demais entes. Assim, o homem é o animal que sorri, que finge, que fala, que cria, que reza, que decide, que transa, que ama, que duvida, etc. E, em todos estes casos e em quaisquer outros, além de ser o ente quê, ele também é o ente que sabe quê.

Com Heidegger, a coisa não será diferente. Ele percebeu que uma ontologia que tematize o homem em sua especificidade deverá, de saída, reconhecer que ele é um (e talvez "o") ente que sabe que é. Por saber que é, o homem não simplesmente é: ele existe. E é justamente por este saber do ser lhe constituir uma nota essencial que o homem é caracterizado, em Ser e Tempo, como um ser-aí (um Dasein). O ser-aí se relaciona com o seu duplo "saber" do ser (o saber que há ser, e o saber que ele próprio é); e os diversos modos deste relacionar-se (e a lista é grande: pré-compreensão, circunvisão, compreensão mediana, falatório desenraizado, compreensão elaborada em interpretação, consideração teórica, curiosidade dispersa e desamparada, tradição enquanto discurso já sempre pronunciado, consciência enquanto clamor, etc) implicarão outros tantos modos (ou sub-modos) de ser.

Diante disto, percebe-se que há uma necessidade ontológica de se colocar a questão do ser. O referido saber do ser nunca se dará na forma de um já-sabido, de um conhecimento possuído, da mesma forma que a vida nunca é no particípio: ela é um gerúndio (um estar vivendo) tendendo e pretendendo ao infinitivo (ao viver – mais, melhor, sempre).

Pode até parecer um exagero assinalar uma tal necessidade ontológica, uma vez que a a maioria das pessoas, em seu ser-aí, jamais se dá conta de um tal questionar. Esta impressão, porém, decorre de uma falsa compreensão do que significa necessidade. Pensa-se nela como numa carência; mas isto, embora não desarrazoado, é impreciso: a carência é um modo da necessidade: a necessidade não satisfeita. Não a esgota, portanto.

Uma comparação ajudará a esclarecer. Biologicamente, a vida é sua própria necessidade: o ser vivo necessita continuar vivendo. No caso da vida organizada, a necessidade é permanecer organismo: permanecer uma "vida feita de vidas". Quando perturbações locais, como perdas energéticas, danos estruturais ou processos de organogênese irrompem contra a inteireza e a plenitude desta totalidade orgânica, o organismo perfeito torna-se imperfeito, e a necessidade satisfeita torna-se carência. E eis a fome, a sede, a libido. A saciedade, portanto, não elimina a necessidade: ao contrário, a reconstiui. Ela desfaz a carência, a insatisfação.

Pois bem: o homem, enquanto ser-aí, é necessariamente aberto para a questão do ser. Ela constitui o seu modo de ser, mesmo que ele nunca a torne explícita, num efetivo meditar aqui ou ali,  mesmo que ele nunca lhe sinta a carência. Ressalte-se, aliás, que aquele que nunca experimentou a carência nada sabe da plenitude. A maioria de nós, a maior parte do tempo, vive inscientemente em meio a esta necessidade ontológica da questão do ser, enquanto faz as perguntas ônticas do cotidiano (o que fazer, o que comer, o que dizer, o que comprar). É de ser, ou do ser, que sempre se trata.

A necessidade impercebida, porém, pode estar vigendo ao modo da carência ou da saciedade (que não é plenitude): pode ser, de fato, que eu não perceba que me faltam bases suficientes para compreender o ser, que eu tenha somente a compreensão vaga legada pela tradição e pelo senso comum. Ou pode se dar o caso de eu viver em meio a um horizonte de sentido elaborado e articulado (como o de uma religião, por exemplo), que providencie respostas profícuas para questões cuja meditação implique um grau de consideração razoável da questão do ser. Em todo caso porém, a questão do ser é sempre recolocável, porque necessária. Fala-se porque há ser, compra-se porque há ser, vive-se porque há ser. Sim, e.... ? E a carência. E a necessidade.

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