Fé e razão - de Platão a Agostinho, de Aristóteles a Aquino (Parte III)

3 De Aristóteles a Aquino

Na célebre tela de Rafael, "A Escola da Atenas", Aristóteles aparece dividindo o centro das atenções com Platão, mas em atitude diversa deste. Platão acena para os céus, enquanto Aristóteles abaixa a palma estendida para o chão. Esta alegoria resume exemplarmente o modo como os dois grandes sábios da Atenas pré-alexandrina foram predominantemente recebidos pela posteridade.

No entanto, aqui também a comparação não deve culminar em separação taxativa: nem a filosofia platônica era destituída de referência ao saber científico do mundo (não ingressava na Academia quem não soubesse geometria, a ciência abstrata do concreto: das formas e do espaço); e nem Aristóteles, por seu turno, ficou alheio a toda e qualquer especulação hoje classificável como transcendente.

A maior prova do que foi dito consiste no modo como o grande estagirita visualizava o ápice ou abóbada do seu edifício filosófico: a por ele chamada prote philosophia (filosofia primeira), por outros depois intitulada Metafísica. Ela consistia na ciência (episteme) dos princípios (arche) e causas (aitia) supremos, do ser em geral (to on) (Metafísica, livro Alfa 2, 983 a5), do ser enquanto ser (op. cit., livro Gama, 1003, A21), e da substância (ousia)7. Mas também era uma ciência de Deus (theos)8. E, por quê? Porque Deus é a ousia verdadeira (forma pura sem matéria, ato puro sem potência), porque ele é ser em sentido mais próprio (por ser plenamente substância), e por ele ser a arche/aitia suprema de todas as coisas.

Há em Aristóteles, portanto, um logoi (discurso, pensamento) a respeito deste ser divino. Isto significaria, portanto, que, nele, a compreensão do theos se daria unicamente no plano da episteme (ciência), como tarefa daquela parte do homem que os gregos denominaram logos (que os medievais redenominarão ratio, razão), e que ele, Aristóteles, nomeou como logon psyche (função ou potência racional do homem)9? Isto não estaria em coerência, justamente, com a definição de homem por ele fornecida: zoon logon echon(animal dotado de logos)?

Esta seria a solução imediata, suscitada pela aparência interna da doutrina (em sua constante referência ao logos), como pela aparência externa (pela comparação com Platão, por exemplo). Traata-se, no entanto, de uma solução falsa. Nem tudo, para Aristóteles, é passível de explicação: há verdades que devem ser acolhidas sem justificação lógica, uma vez que estas servem, inclusive, para a justificação de outras proposições, ditas derivadas. Ao lado da razão demonstrativa, potência realizadora do pensamento lógico-demonstrativo (logos apodeitekos)10, há uma outra forma de intelecção do real, que o apreende diretamente: o Nous (termo melhor traduzível por "intelecto" ou inteligência, no sentido específico de "faculdade ou capacidade de inteligir").

Mas, como funciona esse Nous? Ele pode receber regras, como o raciocínio lógico, ao qual Aristóteles dedicou uma série de tratados depois reunidas sob o título sugestivo de organon (instrumento)? A resposta é negativa. A verdade se revela ao Nous, originariamente, mas imprevisivelmente. Ela simplesmente se dá. Um exemplo pode aclarar. Aristóteles, pensando a partir do princípio de não-contradição, derivou uma série de regras para a lógica; mas, o princípio de não-contradição em si mesmo não foi derivado de nenhum outro: foi uma intelecção direta. O cálculo lógico pode estar certo ou errado. A intelecção noética, não: ela pode ocorrer ou não, estar presente ou ausente, revelar-se ou ocultar-se. Mas é sempre verdadeira (para Aristóteles).

Em que isto, porém, serve à discussão do tema fé e razão em Aristóteles? Serve-o na medida em que se atenta para o fato de que, justamente no estudo a respeito do theos, Aristóteles se serve de uma série de proposições originárias, postuladas e não demonstradas: ou seja, ele se achega ao estudo de Deus a partir do Nous. É justamente aí que ele, ao partir das demonstrações (apodeixis) da Física a respeito do movimento (kinesis), chega, na filosofia primeira (Metafísica), à idéia de um Movente Imóvel (kineseos akineton). Este é seu "credo", sua fé pessoal, evidentemente alicerçada em certos elementos do caldo de cultura no qual ele viveu, mas particularíssima em relação a outras possibilidades também possíveis naquele contexto.

Não se está dizendo, com isto, que o nous aristotélico equivale à fides medieval ou à fé como hoje se lhe entende. Muitos pensadores posteriores refletirão sobre a fé a partir da parêmia nous x logos (como prova disto, recorde-se a distinção medieval entre ratio e intellectus). Em todo caso, contudo, o modo de ocorrência da verdade "noética" é o mesmo da verdade dogmática: a revelação ou desvelamento.

É com base, portanto, numa noesis que Aristóteles enunciará teses a respeito de Deus. Embora declare (Metafísica, livro alfa) que a ciência de Deus só é plenamente possuida por ele mesmo, eis que ele se propõe ensaiar enunciados sobre o tema a partir das conclusões da Física, com destaque para a sua teoria das quatro causas (aitia). Para ele, todo ente realmente efetivo (ousia, substância), que veio a ser (por nascimento, genesis, ou criação, poiesis), pode ser explicado a partir de11: a) matéria (hyle), aquilo "de que é feito", do que provém; b) forma (morphe), aquilo que a coisa é essencialmente, aquilo que proveio; c) princípio do movimento ou princípio da mudança (arché kineseis \ arché metabolé), hoje entendida como "causa eficiente": aquilo que iniciou o processo (movimento\mudança) pelo qual a substância veio a ser; d) fim do movimento ou mudança (telos), hoje entendida como "causa final": aquilo que encerrou (ou provocou o encerramento de) o processo de surgimento\criação da substância.

Observe-se que a física aristotélica concentra-se em torno de duas noções principais: a substância (ousia), composta (no caso da substância sensível, comum) de matéria e forma; e o movimento\mudança, composto de um princípio (arché kineseos) e de um fim (telos kineseos). Ocorre, no entanto, que o movimento é subordinado à ousia: afinal, todo movimento ou é de uma substância, ou é o processo pelo qual uma substância surge ou desaparece, aumenta ou diminui, altera ou se corrompe. É com base nesta intelecção (noesis) que Aristóteles partirá da premissa de que a realidade divina deve ser uma ousia plena e não uma kinesis, (e nem uma ousia em movimento ou devir). Intelecção semelhante o conduziu, na Física, a postular a origem de um princpío primeiro de todo o movimento, ele próprio não movido; e o fez, na "Metafísica", a identificá-lo àquela ousia suprema, a Deus.


Um leitor desatento poderá julgar que aí se trata de inferências. Mas não é o caso. A tese do primeiro movente não é uma conclusão de um silogismo: é um "salto" a partir da empiria (experiência acumulada), da percepção de que, até onde lhe fora dado ver, não havia movimento sem movente. Trata-se de um postulado ("deve haver"), e não uma inferência ("por isto e isto, há, necessariamente, aquilo").

Parte IV: http://paragensfilosoficas.blogspot.com.br/2013/09/fe-e-razao-de-platao-agostinho-de_8201.html

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