Realismo em Hegel, Idealismo em Marx? Parte III (O Caráter não-ético da Sociedade Moderna)



1.2. O caráter não-ético da Sociedade Moderna segundo Hegel

O surgimento da Sociedade Civil é visto por muitos pensadores políticos modernos (dos quais Rousseau talvez seja a única grande exceção) como um progresso histórico da civilização humana. O contraste entre os modos de vida e as concepções e atos dos europeus e dos povos que estes julgaram “selvagens” forneceram um paradigma apologético da Sociedade como instância necessária para o aprimoramento (ou domesticação, conforme a perspectiva) da supostícia fera humana.
Hegel, entretanto, não concordará com esta visão das coisas. Na Filosofia do Espírito de sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, §§523[1], ele argumenta que, ao contrário da Família, que pode ser considerada como uma única pessoa por constituir uma unidade verdadeira, a Sociedade Civil consiste em uma particularização abstrata da “Substância Espiritual”. Isto significa que ela não se realiza na forma de uma unidade orgânica ou intrínseca, mas de uma unificação extrínseca, composta de muitas famílias ou indivíduos acidentalmente interligados pela coexistência em um espaço geográfico e político.
O problema é que, para Hegel, por representar uma unidade abstrata, a Sociedade Civil implica um empobrecimento espiritual em relação à Família, pois ela perde o caráter ético, “uma vez que estas pessoas como tais não têm na sua consciência e como seu fim a unidade absoluta, mas a sua própria particularidade e o seu próprio ser para si; donde nasce o sistema da atomística”[2].
A perspicácia desta afirmação, que prenuncia o individualismo ético, a maximização econômica do auto-interesse e o indiferentismo político da futura sociedade de massas, se torna ainda mais penetrante quando se considera que a Alemanha do tempo de Hegel se encontrava em estágio ainda quase-feudal (tipo societal patriarcal e de forte ranço familiar), e que a Sociedade Industrial nascente do outro lado da Europa, na Inglaterra, estava longe de estar consolidada – Londres só veio a ter seu distrito proletário em meados do século XIX.
Ademais, somente no século XX é que as forças de desagregação (Hegel diria: particularização) da Sociedade Civil se mostraram mais intensas, com a “Sociedade de Trabalhadores” e com a solidão enquanto fenômeno de massa[3].


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[1] Apud WEFFORT, Francisco et alli. Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 1996, p. 115.
[2] Ibidem.
[3] Dois fenômenos minuciosamente estudados por Hanna Arendt em A Condição Humana. 

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